vieiracalado-poesia.blogspot.com

vieiracalado-poesia.blogspot.com

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Novelo de Pó


Não vou dizer-te os meus pensamentos íntimos
não quero convencer-te do que é inútil e vão
para a história impreterível das eras,
o redundante levado pelo fio dos séculos
direito a um céu velho de estrelas

porque o meu tempo é o que corre nas minhas veias
e só a mim pertence,
porque é apenas infinitivamente meu
o novelo de pó que a areia reorganiza
na geografia dum deserto,
a harmonia própria do meu próprio deserto.


quinta-feira, 31 de março de 2016

UM DIA


Um dia acende-se o fulgor do palco,
cai o pano sobre o pó.

Evaporam as palavras de teus olhos.

Um pássaro boceja à beira do tempo.

Depois,
não há antes nem depois.

Apenas um silêncio,
um perfume ecoando sobre o vale,
uma folha distraída levada pelo rio.

segunda-feira, 21 de março de 2016

CHEIRAR O PÓ

A redescoberta que é ver o pó, cheirar o pó,
cheirar a pó. É um rumor inerte, um retrato
tangível de outras memórias perfurantes,
um vazio entre azuis e baços no chão da terra
gritando segredos abatidos ao silêncio ileso.

Praticar a ciência do pó é viajar pelos gelos
da montanha, um texto insondável de signos
sobre a água, reminiscência doutras águas
de apenas a cognição nua, virgem, das fontes

é desvendar a erosão, o murmúrio de colunas
gregas, efémeras, a inocente exaltação das aves
assim que o sol reacende a festa inadiável


e contemplar uma indústria sem nome e sem data,
sem prólogo, divina, puríssima, demoníaca.


segunda-feira, 14 de março de 2016

É VIOLENTA A BRISA


É violenta a brisa pela tardes de outono,
uma angústia infinita como um túmulo       
que sopra sobre um desespero sereno.

E longa é a distância onde soa a claridade,
porque remoto é o recanto do cantar
tranquilo, as noites longínquas do sonho.



quarta-feira, 9 de março de 2016

O ciclo da água


Onde o corpo percorremos feito de água.

Onde o corpo percorremos    percorremos
o ciclo da água.

Onde o instante desvendamos    desvendamos
o gesto
pelas mãos.

Possível
–  feito de água  –


mas possível.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Cidade anónima


Chego a esta cidade
despido de emoções
as mãos vazias
o olhar vago, sem referências.

Trago apenas uma pequena auréola de luz
a enfeitar o meu cabelo
pela desobediência aos ritmos
os cinzentos que leio nos ares.

Corpos estranhos desenham-se
na nudez das minhas veias
como o silêncio das águas
dum lago a rasar o azul

É tarde para situar-me
na amálgama das ruas

Só me resta uma nesga de sol
antes da noite que soa.


 inédito

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

CELEBRAR A TERRA

Celebrar a terra que acende os horizontes, a persistente luz
das estrelas, e me ensina a alegria chã das aves diligentes,
a metamorfose dos insectos sobrevoando os vales do tempo.

Como não hei de venerar a ostentação dos seus véus brancos
quando caminham longe, permitido o logro, os festejos do sol,
alheios à nudez dos ares, a mão que ateou a viuvez do tempo?

Celebrar os jogos lascivos do vento abrasando vultos voláteis
de árvores despidas, esculpidas na nitidez das tardes paradas,
ignorantes de que nas cinzas é possível ler o poder das cinzas,
a comovente singularidade de serenos crepúsculos, quando
já outros partiram rumo ao apaziguamento, num barco de luz
livre, escrevendo o seu nome numa flor de lótus, à beira Nilo.

E por fim celebrar as vestes heróicas, a cada manhã revelada,
do modesto ofício duma flor enfeitiçada sobre o rio que passa,
dum pássaro madrugador iludindo o enigma plural da noite.

Festejar a sua inocência, o incêndio imperfeito das sombras
que rasam os seus destinos, numa desordem programada,
para que prossiga o festim vagaroso, prosaico, das estrelas.


 em "TERRACHÃ", ed. AJEA, 2004

sábado, 30 de janeiro de 2016

DIAS TRANSPARENTES


Nestes dias de transparências violentadas
sonho a ardência duma árvore estóica
testemunhando os ludíbrios da paisagem,
um rio que simplesmente prossegue
e se disfarça em devaneios de águas claras
no rigor dos invernos que conhece.

Subo do meu frio por escadas verticais,
um perfil amargurado de vozes interiores
que me trazem às franjas da realidade,
os alicerces da essência dos objectos,
onde apenas vislumbro os excessos da luz
as cinzas ou o fogo de vulcões extintos.

Contemplo, nas fronteiras do alvoroço,
os murmúrios de antigos violoncelos
sussurrando o desígnio das águas leves
fustigando o granito das profundas fendas
da terra, num exercício demolidor. 

Mas nada sei dos exercícios de barro,
apenas reconheço o ar circundante
que prossegue dando frescura às vigílias,
na lassitude serena de entender a bruma
a descer sobre a superfície das origens.

Por isso apenas me atenho às evidências
do pólen esvoaçando ao sabor do vento,
a pura sedução das vertentes da luz
o mecanismo rigoroso dum grão de trigo.

in "Transparências", 1999

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

ESTAS RUAS

Estas ruas são um enredo
de caminhos e de enredos.

Perpassam sobre as sombras da tarde
e tarde desvendam o esmaecer
do fulgor dos dias.

Presas ao lugar
dão lugar à indiferença
como um bocejo rigoroso.

Acendem o desencanto
e escrevem os meus versos
no verso duma folha morta.



sábado, 19 de dezembro de 2015

Uma casa constrói-se ao lado dum caminho


Uma casa constrói-se ao lado dum caminho,
a respiração contida, a luz adequada à festa
duma porta entreaberta, grave, mas vigilante,
na virginal sedução por aromas encobertos.

Para sustentá-la em seus símbolos de fogo
e seus muros de imponderável leveza,
iludem-se os barros no plasma dos sonhos,
o tecto lavra-se para as duradoiras chuvas
em cerimónia primitiva ritual de origens.

Servem-se as ervas em remotas narrativas
de saberes esquecidos, vividos nas cinzas
do tempo breve que preencheu a claridade.

E para a necessária tolerância das ruínas
a incansável circulação dos magmas, o frio,
ignoram-se os desvios dum coração audaz

porque a casa é o lugar exacto dos ruídos
a respiração das águas que caiem devagar
desconhecendo o pó, os átomos do delírio.

 em "CAUSAS DE HABITUAÇÃO", a publicar

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

NU TEMPO

X

"A nossa consciência é o próprio tempo!" 
Henry Bergson


Somos, pois,
apenas personagens do exercício de passar
pelo espaço, que julgamos ser o nosso tempo,
um poema – talvez um poema… –,
ou um simples texto ausente de sintaxe ou nexo,
escritos nos interstícios do vento!

Porque eles coabitam nos átomos do ar,
como nós em outrem coabitámos
desde antes de sermos nós,
sem conhecer as fronteiras do contínuo futuro
no seu espaço/tempo, sem era e cem limites
que num abraço longínquo escoa os seus limites,
numa ampulheta vertical sobre a cabeça.

Porém, és tu que dá corpo e dependência
à tua sede de utopias e delírios,
como numa emoção estética 
somos nós quem dá vida a um quadro intemporal ‒
o prémio de entender a passagem ímpar dos corpos
pelo abstrato fruto da inquietação.


  (…)

 Pág 67 do poema "Nu Tempo", a publicar.

sábado, 28 de novembro de 2015

Façamos hoje o mesmo gesto

'
Façamos hoje o mesmo gesto delicado
dos nossos avós

em memória dos princípios que regem
o propósito antigo
de plantar uma árvore onde havia outra árvore
no chão que persiste

o projecto lhano do destino
de ir substituindo gerações por outras gerações
sobre a terra.

Façamos esse mesmo gesto delicado
em memória dos nossos avós
e do seu propósito antigo de reger-se
por processos que persistiram desde os antigos

que plantavam árvores para a ventura
de ver a terra coberta de flores e seus frutos
para seus filhos

filhos de seus gestos antigos dedicados
de ir plantando árvores
sobre a terra.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Sou um tresloucado


Sou um tresloucado à procura de sossego,
um pária errante em cata duma pátria
que me traga no sossego a plenitude,
a harmonia própria duma pátria

longe de vulcões de pântanos e de lama,
comércio de almas e valores corrompidos,
longe da vacuidade da vanglória
e mais longe ainda do atropelo à dignidade,

mesmo dos que não sentem o atropelo
por desgraça de não saber ou não o querer,
tresloucados como eu vivendo a vida,

esta vida que não quero mas não desdenho
que a vida é fardo leve de quem tem
o mal de amar sem perda ou recompensa.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

NAQUELA NOITE


 
Naquela noite sonhei que sonhava.

Era dia.

No meu sonho estavas tu alegre nem um pássaro
subindo no meio duma fresta de sol,
em inverno rigoroso.

Eu sonhava e dizia-te sonhei contigo,
estavas tu a sorrir sentada no chão,
enquanto a chuva caía sobre uma árvore despida de folhas,
meditativa.

Era uma sensação plena de ternura
pelos teus grandes olhos azuis alucinados,
ignorante da vacuidade dum extenso fogo
que eu já vi nos despenhadeiros
por onde andam os répteis absurdos,
nas linhas verticais dum desejo.

O teu corpo reclinava-se,
voava em cima dum enorme bloco de gelo
que transfigurava tudo no cinzento dum pombo, 
na noite plúmbea do mar.

Eras tu que vigiavas uma fábrica de beijos,
homens e mulheres de estranhos capitéis
para se protegerem da geada
ou talvez da antiga ciência do deslumbramento.

Eu era apenas uma sombra.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

VERTIGEM


Vertiginosas são estas árvores que eu vi nascer.

Vertiginosas suas folhas desprendidas em cascata,
a história transparente do granizo embranquecendo
o meu cabelo, as minhas múltiplas peregrinações
num cântaro de luz, como pétalas de veludo acariciando
os meus olhos deslumbrados de menino.


Vertiginoso é este caminho de corais e anémonas
que preenche o mar dos meus abismos,
um claustro de iluminuras e ludíbrios de cristal
que descerra clareiras e frágeis seduções
pairando sobre o limbo duma tempestade violenta,
em nuvens de poeira e exercícios de alquimia. 


Vertiginosas são as cores, os desígnios das estrelas,
a sua perene vitalidade, em todos os céus do céu,
em todos os lugares onde tem lugar a terra-mundo,
como lâminas de aço cortando os meus devaneios,
a minha absurda ingenuidade, o muro dos murmúrios
que desce em rampa até ao fundo da minha mágoa.