vieiracalado-poesia.blogspot.com

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quinta-feira, 16 de junho de 2016

A CASA ANTIGA



Estas paredes preservam o modelo antigo
das casas
o método tradicional do corpo instituído
por analogia às árvores                                                                                                     

um envelope para guardar a seiva
a estrutura íntima das flores
em sua esfinge impenetrável.

Têm as raízes na terra
como as memórias dum rio,
uma transparência donde se vê o fundo
a sombra célere enigmática das margens

Mantêm a dignidade vertical dum lírio
como um poço de vertigens, uma faísca
que perdura

e a mesma janela antiga descerrada,
uma onda transviada em mera dispersão da luz,
como o fazem os fogos da paixão
que se derramam pelas bermas dos caminhos.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

PEDRA DA PROMISSÃO


Novo e novo e sempre igual
o dia de amanhã
tece fantasmas no écran.

Pode chover dias e dias a fio
como as folhas no Outono,
pode sentir-se o frio das palavras sólidas
como a única certeza do condenado,
podem mesmo aparecer sinais no céu
a dizer que não há nada,
que o poeta
atento e absorvido
sonha sonhos impossíveis de sonhar

e espera pelo dia prometido.

sábado, 28 de maio de 2016

POEMA DE AMOR


Eras bela pela tarde à luz mutante
no teu rosto de menina,
já mulher
e anunciavas flores de jasmim
num lascivo desejo de romãs
que acendias devagar em minhas mãos.

Eras tu que trazias o enigma resolvido
da plenitude na planície, na longa espera
duma pétala oscilando ao sol,
o pólen dum lírio madrugador a clarear
o horizonte, o meu sangue ansioso
por assistir à cerimónia repetida
das espigas e do pão.

Trazias pela tarde o meu sustento
até ao fim da ausência,
o arco-íris
como a crina dum cavalo ao vento
emudecendo a cinza de meus olhos.

Eras tu a voz que se ouvia na vertigem
de olhar uma aldeia acordada por tambores,
nas origens, no orvalho, no barro
dum prelúdio que já tive, de alegrias.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

O coração conhece o segredo


O coração conhece o segredo dos pássaros,
a ânsia de horizontes para além do horizonte.

O segredo dos pássaros é uma centelha
de luz rebuscando a simplicidade duma vida

mas em mim apenas memórias difusas de exiguidade
e fantasmas de veludo passeando mãos inertes
sobre o meu rosto

ou labaredas azuis duma tarde quente
e o fio dum arco-íris
em suas cores de transparência e frio.

O coração conhece o segredo dos pássaros
e o seu degredo.

E eu apenas recomeço sempre os trabalhos
da simplicidade da minha vida
e reconheço a sua exiguidade

guiada por horizontes de bruma.

em "Os Lábios Múltiplos da Página", a ser apresentado em Agosto.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

(excerto) de NU TEMPO


 VII

   “A claridade é uma justa repartição de sombras e de luz. 
   Goethe
  
Descrever os seus domínios,
a respiração bárbara da nossa ansiedade,
a sua dimensão alada
‒ o domínio improvável da dimensão
que paira sobre as elementares dimensões do nosso corpo,
como aquelas manhãs que se fecham
num quarto de janelas  fechadas ‒,

é árdua tentativa desvendar
a textura das areias duma rosa no deserto,
os domínios da sua solidão petrificada,
o azul dos céus, o além inquieto, o lilás e o rosa
que perfuram o cinzento dos dias 
com um dilúvio de sol para a nossa sede,

mas  mais que tudo
o que nunca nos atrevemos a dizer
do pacto imperturbável das águas
com os restos da poeira,
repartindo as sombras e a luz,
as divagações dos faunos e do vento batendo nas árvores
levando para longe as folhas, dispersando-as
com paixão pelo desmembramento,
cumprindo a subtil função do sistema
transparente,

que vemos muito para além do azul dos céus.

pp 21

Extracto de Nu Tempo, um dos meus próximos livros

sábado, 30 de abril de 2016

RENASCER


Borboleta bonitita
pôs os ovos
numa couve
do quintal.

Ai, céus, menina:

A beleza principal!

domingo, 24 de abril de 2016

PROCURO UM LUGAR

Procuro um lugar
nas margens do campo aberto,
um lugar para abrir
a voz das minhas interrogações
sentenciadas ao silêncio
das sentenças imperativas -

a minha desgastada busca
pelas estradas mudas
onde se busca o fim.

Não o encontro,
embora saiba que a fronteira
é vasta,

vastas as margens dos lugares
onde é possível
sonhar a aurora,
no abismo
de encontrar um caminho
de plenitude
no meio da bruma.

inédito

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Novelo de Pó


Não vou dizer-te os meus pensamentos íntimos
não quero convencer-te do que é inútil e vão
para a história impreterível das eras,
o redundante levado pelo fio dos séculos
direito a um céu velho de estrelas

porque o meu tempo é o que corre nas minhas veias
e só a mim pertence,
porque é apenas infinitivamente meu
o novelo de pó que a areia reorganiza
na geografia dum deserto,
a harmonia própria do meu próprio deserto.


quinta-feira, 31 de março de 2016

UM DIA


Um dia acende-se o fulgor do palco,
cai o pano sobre o pó.

Evaporam as palavras de teus olhos.

Um pássaro boceja à beira do tempo.

Depois,
não há antes nem depois.

Apenas um silêncio,
um perfume ecoando sobre o vale,
uma folha distraída levada pelo rio.

segunda-feira, 21 de março de 2016

CHEIRAR O PÓ

A redescoberta que é ver o pó, cheirar o pó,
cheirar a pó. É um rumor inerte, um retrato
tangível de outras memórias perfurantes,
um vazio entre azuis e baços no chão da terra
gritando segredos abatidos ao silêncio ileso.

Praticar a ciência do pó é viajar pelos gelos
da montanha, um texto insondável de signos
sobre a água, reminiscência doutras águas
de apenas a cognição nua, virgem, das fontes

é desvendar a erosão, o murmúrio de colunas
gregas, efémeras, a inocente exaltação das aves
assim que o sol reacende a festa inadiável


e contemplar uma indústria sem nome e sem data,
sem prólogo, divina, puríssima, demoníaca.


segunda-feira, 14 de março de 2016

É VIOLENTA A BRISA


É violenta a brisa pela tardes de outono,
uma angústia infinita como um túmulo       
que sopra sobre um desespero sereno.

E longa é a distância onde soa a claridade,
porque remoto é o recanto do cantar
tranquilo, as noites longínquas do sonho.



quarta-feira, 9 de março de 2016

O ciclo da água


Onde o corpo percorremos feito de água.

Onde o corpo percorremos    percorremos
o ciclo da água.

Onde o instante desvendamos    desvendamos
o gesto
pelas mãos.

Possível
–  feito de água  –


mas possível.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Cidade anónima


Chego a esta cidade
despido de emoções
as mãos vazias
o olhar vago, sem referências.

Trago apenas uma pequena auréola de luz
a enfeitar o meu cabelo
pela desobediência aos ritmos
os cinzentos que leio nos ares.

Corpos estranhos desenham-se
na nudez das minhas veias
como o silêncio das águas
dum lago a rasar o azul

É tarde para situar-me
na amálgama das ruas

Só me resta uma nesga de sol
antes da noite que soa.


 inédito

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

CELEBRAR A TERRA

Celebrar a terra que acende os horizontes, a persistente luz
das estrelas, e me ensina a alegria chã das aves diligentes,
a metamorfose dos insectos sobrevoando os vales do tempo.

Como não hei de venerar a ostentação dos seus véus brancos
quando caminham longe, permitido o logro, os festejos do sol,
alheios à nudez dos ares, a mão que ateou a viuvez do tempo?

Celebrar os jogos lascivos do vento abrasando vultos voláteis
de árvores despidas, esculpidas na nitidez das tardes paradas,
ignorantes de que nas cinzas é possível ler o poder das cinzas,
a comovente singularidade de serenos crepúsculos, quando
já outros partiram rumo ao apaziguamento, num barco de luz
livre, escrevendo o seu nome numa flor de lótus, à beira Nilo.

E por fim celebrar as vestes heróicas, a cada manhã revelada,
do modesto ofício duma flor enfeitiçada sobre o rio que passa,
dum pássaro madrugador iludindo o enigma plural da noite.

Festejar a sua inocência, o incêndio imperfeito das sombras
que rasam os seus destinos, numa desordem programada,
para que prossiga o festim vagaroso, prosaico, das estrelas.


 em "TERRACHÃ", ed. AJEA, 2004

sábado, 30 de janeiro de 2016

DIAS TRANSPARENTES


Nestes dias de transparências violentadas
sonho a ardência duma árvore estóica
testemunhando os ludíbrios da paisagem,
um rio que simplesmente prossegue
e se disfarça em devaneios de águas claras
no rigor dos invernos que conhece.

Subo do meu frio por escadas verticais,
um perfil amargurado de vozes interiores
que me trazem às franjas da realidade,
os alicerces da essência dos objectos,
onde apenas vislumbro os excessos da luz
as cinzas ou o fogo de vulcões extintos.

Contemplo, nas fronteiras do alvoroço,
os murmúrios de antigos violoncelos
sussurrando o desígnio das águas leves
fustigando o granito das profundas fendas
da terra, num exercício demolidor. 

Mas nada sei dos exercícios de barro,
apenas reconheço o ar circundante
que prossegue dando frescura às vigílias,
na lassitude serena de entender a bruma
a descer sobre a superfície das origens.

Por isso apenas me atenho às evidências
do pólen esvoaçando ao sabor do vento,
a pura sedução das vertentes da luz
o mecanismo rigoroso dum grão de trigo.

in "Transparências", 1999

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

ESTAS RUAS

Estas ruas são um enredo
de caminhos e de enredos.

Perpassam sobre as sombras da tarde
e tarde desvendam o esmaecer
do fulgor dos dias.

Presas ao lugar
dão lugar à indiferença
como um bocejo rigoroso.

Acendem o desencanto
e escrevem os meus versos
no verso duma folha morta.



sábado, 19 de dezembro de 2015

Uma casa constrói-se ao lado dum caminho


Uma casa constrói-se ao lado dum caminho,
a respiração contida, a luz adequada à festa
duma porta entreaberta, grave, mas vigilante,
na virginal sedução por aromas encobertos.

Para sustentá-la em seus símbolos de fogo
e seus muros de imponderável leveza,
iludem-se os barros no plasma dos sonhos,
o tecto lavra-se para as duradoiras chuvas
em cerimónia primitiva ritual de origens.

Servem-se as ervas em remotas narrativas
de saberes esquecidos, vividos nas cinzas
do tempo breve que preencheu a claridade.

E para a necessária tolerância das ruínas
a incansável circulação dos magmas, o frio,
ignoram-se os desvios dum coração audaz

porque a casa é o lugar exacto dos ruídos
a respiração das águas que caiem devagar
desconhecendo o pó, os átomos do delírio.

 em "CAUSAS DE HABITUAÇÃO", a publicar

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

NU TEMPO

X

"A nossa consciência é o próprio tempo!" 
Henry Bergson


Somos, pois,
apenas personagens do exercício de passar
pelo espaço, que julgamos ser o nosso tempo,
um poema – talvez um poema… –,
ou um simples texto ausente de sintaxe ou nexo,
escritos nos interstícios do vento!

Porque eles coabitam nos átomos do ar,
como nós em outrem coabitámos
desde antes de sermos nós,
sem conhecer as fronteiras do contínuo futuro
no seu espaço/tempo, sem era e cem limites
que num abraço longínquo escoa os seus limites,
numa ampulheta vertical sobre a cabeça.

Porém, és tu que dá corpo e dependência
à tua sede de utopias e delírios,
como numa emoção estética 
somos nós quem dá vida a um quadro intemporal ‒
o prémio de entender a passagem ímpar dos corpos
pelo abstrato fruto da inquietação.


  (…)

 Pág 67 do poema "Nu Tempo", a publicar.