vieiracalado-poesia.blogspot.com

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domingo, 4 de outubro de 2015

POEMA DRAMÁTICO


Fechado durante séculos,
o livro guardava o mistério das altas torres,
a água subterrânea das fontes.

Um nómada inquieto, 
filho das sombras,
indiscreto como uma criança,
o abriu.

Dentro, permanecia, inerte,
absorta no seu segredo, a gravura.

Quando o papel me chegou às mãos,
trazia pintado, a lápis de cor,
esse edifício imponente em seus tons verde e castanho,
como uma árvore.

Era a imagem comovente de antigos cadafalsos,
que arrepiava os ossos de perceber a intensidade
e o drama daquelas vidas,
hoje apenas o verdete nos beirais das casas,
uma luz oblíqua e um tecto despovoado 
aberto às chuvas e aos pássaros 
que sopram nos princípios da primavera. 

Observo este estado de alma,
esta vertigem de ver os artifícios duma flor confrangedora 
apegada à utopia,
numa sensação de frio, de imprecisos contornos,
da claridade esmorecida.

Regresso ao mundo, fora do castelo tranquilo.

A angústia mistura-se a um murmúrio,
a uma tranquilidade virtual,
a sedução pelo equilíbrio do sistema.

A gravura voltara para o interior do livro,
ao seu lugar de repouso,
fechado para outros séculos de indulgência.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

SEM REGRESSO


No sem regresso das formas,
amarela lanceolada folha
sobre a terra.

Como a luz,
desnuda
o brilho opaco da nervura

enquanto a cinza
que desenha

 se deslumbra.

sábado, 12 de setembro de 2015

O LIVRO ANTIGO


Folheemos este livro antigo,
os lábios múltiplos da página
que disse a madrugada,
o jardim que desenhou
o corpo diligente dos insectos,
a fogueira do horizonte
que amareleceu estas flores breves.


Folheemos este livro
nas sombras onde cai uma janela
de silêncio,
o sol poderoso
de olhar as planícies,
os cristais da terra.


Folheemos este livro antigo,
o abismo entreaberto nestas páginas,
a cerimónia comovida
consumida por ecos
de imagens doutros dias  
que dizem a palavra longe

onde haveremos de habitar.

domingo, 30 de agosto de 2015

COMO AQUELES OLHOS


Como aqueles olhos que disseram a tua eternidade
até ao fim do mundo

que o fim mundo é a tua ideia derradeira
do tempo
e do abalar dos dias

a visão do que foi eternamente passado
longe para sempre
daqueles olhos que te disseram o dia de ontem

em POEMETOS II - recentemente publicado


domingo, 16 de agosto de 2015

PERDEDOR

Tenho sido sempre um perdedor das coisas simples
no espaço aritmético do coração aberto ao mar.

O meu sangue é um rio deslumbrado das escarpas
que me apertam os ossos ébrios das montanhas
dos altos cumes onde habita a águia
donde se vê de mais perto as estrelas trémulas da alegria.

Sou um perdedor das coisas fáceis, das águas breves
que se amontoam em crepúsculos do passado
e na sucessão vertiginosa de restituídas seivas
inscritos na lápide dos pensamentos nítidos.

Transmito-me pelos limites da maré e dos céus     
que se aprisionam da flauta dos meus olhos
no violoncelo na harpa encandeada
dos dias por onde passo e me consumo.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Eloísa


O meu nome é Eloíza
onde queria eu estar senão em Ibiza
no Mediterrâneo

se trago esta rosa em flor
no sub-cutâneo!


Algures no Mediterrâneo, 1972


em "Poemetos II", a ser apresentado brevemente,
na "IV Mostra de Autores de Lagos", em Lagos

terça-feira, 14 de julho de 2015

Às mãos que passam


Do teu corpo engendrarás um edifício
de palavras
a palavra que quiseres ser um fruto fraternal.

O ministério da saliva fará o que fazem as mãos
ao oferecer uma flor
a quem passa

para que a palavra seja o fermento
de outras flores e outros frutos
para oferecer
a outras mãos que passam.



quarta-feira, 1 de julho de 2015

SEM TÍTULO



Pegar num pedaço de azul-cinzento do mar
é pouco
mesmo que se lhe ajuste um pouco de nada.

O melhor é fechar as luzes amarelas
da noite
e entrar pelo negro absoluto
para poder sonhar.


domingo, 21 de junho de 2015

A FLOR


A flor sobre o plano branco,
a palavra no meio doutras palavras brancas
sem cor e sem chama

ou o fruto maduro entre a folhagem
verde
novo de sabores ignorados

e aquelas mãos
o teu corpo de mulher entre as mulheres
o pano brando onde aprendo
a cor melhor das flores

e sabores.

domingo, 7 de junho de 2015

UM FIO DE BÚZIOS


Um menino trazia um fio de búzios
na concha da minha mão.

Era criança,
mais jovem do que eu julgava
ou imaginava ser, ou ver no azul profundo
os tons ocre e sépia
da falésia que caía sobre o mar.

Era o tempo das nêsperas e das amoras
que ainda brilham nos meus olhos.

Mas era já o tempo das ondas lavrando
a areia, gaivotas estridentes
clamando contra o vendaval.

E o menino nada sabia do vento áspero da montanha
nem da rigorosa fixidez do pão do condenado.

Era apenas uma criança ainda jovem
que procurava búzios na praia, junto ao mar
no azul profundo céu que imaginava
na cor das nêsperas e das amoras
que ainda hoje animam os meus olhos.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

A CINZA DA TARDE


A cinza da tarde é uma subtileza da luz
e do seu destino de fulgência breve;
o engenho das cores numa ilusão de cinzas
para o dia fugidio, para os seus esteios.

Esconde-se e esconde os seus trâmites,
o seu trânsito das palavras ditas,
um rosário de sons pronunciados
por lábios antigos, eruditos em fábulas,
mistérios de imaginar os seus termos.

Penetra os olhos ágeis, simula o frio do ar,
a predestinação para a bruma dos ocasos,
dissimula a hábil vocação das flores
para o caminho da noite, sem ardis.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

NAQUELE TEMPO



No tempo em que as crianças aprendiam a desenhar
um jarro de água em cima da mesa,
uma árvore rodeada de promessas
num carrinho em madeira feito com as próprias mãos
para conquistar a distância e as manhãs

nesse tempo
havia uma grande luminosidade nos ares
uma ânsia encoberto no coração dum pássaro.

A noite que se via no olhar do caminheiro
era uma seta apontada ao destino
e o destino era um mundo de espigas loiras
de trigo plantadas na cidade
das grandes luzes para afugentar a noite.

Nesse tempo havia uma palavra nunca dita
para dar corpo à raiz dos corações:

o caminheiro haveria de ter uma árvore
desenhada por uma criança
enfeitada de palavras
e de espigas
numa rua anónima da cidade.