vieiracalado-poesia.blogspot.com

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quarta-feira, 9 de março de 2016

O ciclo da água


Onde o corpo percorremos feito de água.

Onde o corpo percorremos    percorremos
o ciclo da água.

Onde o instante desvendamos    desvendamos
o gesto
pelas mãos.

Possível
–  feito de água  –


mas possível.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Cidade anónima


Chego a esta cidade
despido de emoções
as mãos vazias
o olhar vago, sem referências.

Trago apenas uma pequena auréola de luz
a enfeitar o meu cabelo
pela desobediência aos ritmos
os cinzentos que leio nos ares.

Corpos estranhos desenham-se
na nudez das minhas veias
como o silêncio das águas
dum lago a rasar o azul

É tarde para situar-me
na amálgama das ruas

Só me resta uma nesga de sol
antes da noite que soa.


 inédito

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

CELEBRAR A TERRA

Celebrar a terra que acende os horizontes, a persistente luz
das estrelas, e me ensina a alegria chã das aves diligentes,
a metamorfose dos insectos sobrevoando os vales do tempo.

Como não hei de venerar a ostentação dos seus véus brancos
quando caminham longe, permitido o logro, os festejos do sol,
alheios à nudez dos ares, a mão que ateou a viuvez do tempo?

Celebrar os jogos lascivos do vento abrasando vultos voláteis
de árvores despidas, esculpidas na nitidez das tardes paradas,
ignorantes de que nas cinzas é possível ler o poder das cinzas,
a comovente singularidade de serenos crepúsculos, quando
já outros partiram rumo ao apaziguamento, num barco de luz
livre, escrevendo o seu nome numa flor de lótus, à beira Nilo.

E por fim celebrar as vestes heróicas, a cada manhã revelada,
do modesto ofício duma flor enfeitiçada sobre o rio que passa,
dum pássaro madrugador iludindo o enigma plural da noite.

Festejar a sua inocência, o incêndio imperfeito das sombras
que rasam os seus destinos, numa desordem programada,
para que prossiga o festim vagaroso, prosaico, das estrelas.


 em "TERRACHÃ", ed. AJEA, 2004

sábado, 30 de janeiro de 2016

DIAS TRANSPARENTES


Nestes dias de transparências violentadas
sonho a ardência duma árvore estóica
testemunhando os ludíbrios da paisagem,
um rio que simplesmente prossegue
e se disfarça em devaneios de águas claras
no rigor dos invernos que conhece.

Subo do meu frio por escadas verticais,
um perfil amargurado de vozes interiores
que me trazem às franjas da realidade,
os alicerces da essência dos objectos,
onde apenas vislumbro os excessos da luz
as cinzas ou o fogo de vulcões extintos.

Contemplo, nas fronteiras do alvoroço,
os murmúrios de antigos violoncelos
sussurrando o desígnio das águas leves
fustigando o granito das profundas fendas
da terra, num exercício demolidor. 

Mas nada sei dos exercícios de barro,
apenas reconheço o ar circundante
que prossegue dando frescura às vigílias,
na lassitude serena de entender a bruma
a descer sobre a superfície das origens.

Por isso apenas me atenho às evidências
do pólen esvoaçando ao sabor do vento,
a pura sedução das vertentes da luz
o mecanismo rigoroso dum grão de trigo.

in "Transparências", 1999